Congresso ameaça aprovar proposta das empresas de aviação agrícola. Estudos demonstram: método é brutal para populações e natureza; e ineficaz contra epidemias
Desde março, os Grupos Temáticos da Abrasco – Saúde e Ambiente, Saúde do Trabalhador, Alimentação e Nutrição e Saúde do Trabalhador, em conjunto com o Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador, discutem como enfrentar uma proposta que transita no Congresso Federal de iniciar a pulverização aérea de inseticidas para o controle de vetores. Como resultado foi escrita a nota contra pulverização aérea de inseticidas para controle de vetores de doenças, confira na íntegra:
Propostas em tramitação no legislativo visando permitir a pulverização aérea de inseticidas para o controle de vetores devem ser reprovadas por conta do elevado potencial de causar graves doenças nos seres humanos, extinção de espécies e perdas econômicas.
A pulverização aérea de agrotóxicos (inseticidas, herbicidas e outros) é uma prática comum na agricultura brasileira que atinge a saúde e o ambiente das regiões diretamente pulverizadas ou daquelas que são atingidas através da deriva técnica. Por conta do elevado percentual de perda durante a pulverização aérea, que pode chegar a mais de 80% e a atingir localidades distantes, o volume necessário para aniquilar os insetos e outras espécies-alvo deve ser muito maior (revisão em Nota Tecnica Fiocruz-Ceará). Por consequência, efeitos sobre a saúde e o ambiente, a perda da biodiversidade e das plantações do entorno decorrem com frequência dessa prática.
A autoridade regulatória dos EUA (USEPA) afirma que a pulverização pode atingir residências, escolas, praças, agricultores das redondezas, animais selvagens, plantas e fontes de água causando danos à saúde. Além disso, também ressalta as perdas econômicas, como o gasto para a compra dos agrotóxicos, deriva técnica (perda de volume durante a dispersão), perda de plantações (quando são atingidas pela deriva de agrotóxicos que não estão permitidos para a cultura). A volatização dos agrotóxicos, incluindo os presentes nas formulações dos inseticidas de uso doméstico, também é apontada pela USEPA como um problema, para os trabalhadores da agricultura e para os moradores de áreas próximas.
No Brasil, relatos de populações atingidas pela pulverização aérea são frequentes, já tendo sido notificados em escolas rurais, aldeias indígenas e regiões rurais, como mostrado no Dossiê Abrasco – um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde (2015). Estudos nacionais e internacionais também têm demonstrado o impacto da pulverização de inseticidas não somente sobre as abelhas e outros insetos polinizadores benéficos à prática agrícola, mas também sobre organismos aquáticos, peixes e invertebrados. Nesse cenário, a legislação nacional vigente (Instrucao Normativa nº 2 de 01/01/2008 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) proíbe a pulverização aérea na agricultura a menos de 500 metros de povoações, cidades, vilas, bairros e mananciais de captação de água para abastecimento e a menos de 250 metros de mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais. Deve-se destacar, no entanto, que essa medida não garante a segurança desse modo de aplicação de agrotóxicos, por conta da possibilidade de deriva técnica, que pode atingir áreas habitadas ou recursos hídricos utilizados para consumo humano e levar ao desequilíbrio ecológico. Desse modo, são necessários esforços voltados à proibição da pulverização aérea de agrotóxicos nas lavouras brasileiras como já foi adotado pela Comunidade Européia.
A proposta de emenda à Medida Provisória 712/2016 do deputado federal Valdir Colatto (PMDB/SC) consiste em permitir a pulverização aérea de inseticidas. A proposta de pulverização aérea de inseticidas em áreas habitadas, elaborada pelo Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (SINDAG), consiste em realizar estudo piloto pulverizando os agrotóxicos malation, fenitrotiona, lambda cialotrina e nalede.
Sobre a proposta de se permitir a pulverização aérea para controle de vetores, cabem alguns esclarecimentos:
1) A pulverização aérea para controle de vetores apresenta potencial ainda maior de causar danos sobre a saúde, o ambiente e a economia local e nacional. Isso porque o volume será pulverizado diretamente sobre regiões habitadas, atingindo residências, escolas, creches, hospitais, clubes de esporte, feiras, comércio de rua e ambientes naturais, meios aquáticos como lagos e lagoas, além de centrais de fornecimento de água para consumo humano. Atingirá ainda, indistintamente, pessoas em trânsito, incluindo aquelas mais vulneráveis como crianças de colo, gestantes, idosos, moradores de rua e imunossuprimidos.
2) Outra suposta vantagem da pulverização aérea de inseticidas apontada pela SINDAG não se justifica, como o fato de poder atingir terrenos baldios e outras áreas pouco acessíveis. Isso porque, na prática, não é possível ter precisão para atingir determinados locais, consequentemente, para se atingir terrenos baldios e áreas abandonadas, as habitações ao redor também seriam contaminadas pelo veneno aplicado por aviões. Mesmo na pulverização aérea agrícola, em que os sobrevôos são mais baixos e, portanto, são mais precisos, o agrotóxico pulverizado é carreado para longas distâncias.
3) A proposta de realização de estudos em área piloto, além de causar a exposição da área estudada e potencialmente causar danos irreversíveis à saúde humana e ao ambiente – e, por isso, envolvendo também aspectos éticos -, não garantiria que os resultados obtidos poderiam ser extrapolados para as demais regiões do Brasil, no que se refere à eficácia ou à segurança da técnica de pulverização aérea. Sobre a “eficácia” contra o mosquito, muitos fatores estão relacionados, como o percentual de deriva técnica do agrotóxico pulverizado (clima, relevo, organização do espaço urbano, revisão em Nota Tecnica Fiocruz-CE), mas também a localização do mosquito nas áreas atingidas e a resistência dos insetos aos produtos químicos pulverizados. Quanto à segurança da pulverização, um estudo piloto não permitiria concluir que a segurança seria satisfatória principalmente em função do tempo insuficiente para observar efeitos sobre a saúde das populações, pois muitos inseticidas, como o malation, por exemplo, são reconhecidos pelo seu potencial de causar câncer, que pode se manifestar muitos anos depois da exposição.
4) A proposta de pulverização aérea da SINDAG prevê a aplicação de fenitrotiona, malation, nalede e lambda-cialotrina, que apresentam elevado risco sobre a saúde. A fenitrotiona e o nalede não possuem autorização para uso na Comunidade Europeia. Vale destacar ainda que a lambda cialotrina é um dos componentes da formulação do produto pulverizado por avião sobre uma escola municipal em Rio Verde intoxicando quase 100 pessoas, entre elas crianças e adolescentes; e o malation foi considerado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), da Organização Mundial da Saúde, como provável cancerígeno humano (grupo 2A) (ver Nota informativa contendo esclarecimentos sobre pulverização aérea e o controle de endemias do Ministério da Saúde). A monografia IARC sobre o malation, também aponta outros danos sérios sobre a saúde humana em decorrência da exposição a este produto, entre eles reações na pele, alterações no sistema nervoso e para o processo de desenvolvimento neurológico do individuo.
5) Do mesmo modo, as experiências de pulverização aérea realizadas no Brasil no ano de 1975 citadas pelo SINDAG, não podem servir de parâmetro para determinar a segurança e a eficácia dessa prática. A densidade demográfica, a organização das cidades e dos órgãos de saúde e ambiente eram diferentes sendo, portanto, situações incomparáveis. Além do fato de que à época da ditadura militar, as informações eram sigilosas e os sistemas de vigilância insuficientes. Apesar da garantia constitucional do direito à saúde, a vigilância das populações expostas a substâncias químicas enfrenta dificuldades, em especial para notificar os casos de intoxicação e promover ações de mitigação e, principalmente, de prevenção e promoção dos casos.
6) O controle de vetores com base na aplicação de inseticidas tem se mostrado ineficaz, induz resistência nos mosquitos e pode causar danos à saúde humana (Nota técnica sobre microcefalia e doenças vetoriais relacionadas ao Aedes aegypti: os perigos das abordagens com larvicidas e nebulizações químicas – fumacê). Os produtos utilizados para controlar vetores possuem os mesmos princípios ativos daqueles usados na agricultura e pertencem, principalmente, ao grupo dos piretróides e organofosforados que tem impacto sério sobre a saúde.
O processo de registro dos agrotóxicos apresenta diversas limitações. Uma delas refere-se à avaliação da segurança para a saúde humana ser feita a partir da interpretação de experimentos onde os animais de laboratório são expostos a somente um agrotóxico; e por uma entrada no corpo, como oral (ingestão), inalatória ou dérmica. Outra limitação refere-se ao fato de o produto final que vai para a prateleira de venda não passar por testes importantes, como aqueles voltados a identificar efeitos sobre a reprodução, fertilidade, desregulação hormonal, malformações e câncer (Ver Nota Inter GTs Estudos científicos e conflitos de interesse: por uma ciência a favor da vida).
Reiteramos que algumas medidas urgentes devem ser tomadas, pois são mais eficazes, duradouras e podem prevenir outras doenças e agravos. São elas: melhoria das condições de vida nas cidades, garantia do acesso a água, esgotamento sanitário, saneamento ambiental, adoção de métodos mecânicos de limpeza, coleta de lixo regular, limpeza de terrenos em espaços públicos e particulares, e suspensão do uso de inseticidas e larvicidas, principalmente em água potável.
Para isso é de suma importância (i) o fortalecimento do SUS que tem sob sua competência as ações de monitoramento das espécies de vírus e mosquitos circulantes; e as funções da vigilância sanitária, ambiental, epidemiológica e da saúde do trabalhador; (ii) que todas essas medidas de controle vetorial sejam debatidas com a comunidade e realizadas garantindo a mobilização social.
Diante dos estudos científicos sobre a toxicidade dos inseticidas e da nocividade do processo de pulverização aérea, e em consonância com a Nota Informativa do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (DSAST) do Ministério da Saúde, a Abrasco, através de Grupos Temáticos, se manifesta contra a adoção da pulverização aérea para o controle de vetores sob qualquer circunstância.